sexta-feira, 29 de novembro de 2013

Frio até aos ossos

O despertador toca. Maldito! Quem o mandou acordar? Quem o mandou acordar-me? De olhos fechados, tiro o braço de baixo do lençol, de baixo do cobertor, de baixo do edredão e, entre o dormir e o acordar, vou pelo escuro em direcção ao som irritante. Às apalpadelas, sabendo inconscientemente onde está, dou-lhe uma pancada.

É sempre assim. Todos os dias. Pelo menos desde que as temperaturas decidiram descer abruptamente. Desde que lá fora, onde o sol já nasceu, o frio impera. E adio a saída da cama. Adio acordar para a realidade. Adio, por mais dez minutos, só mais dez minutos, por-me de pé.

Recolhi o braço. Virei-me para o outro lado. Virei as costas aos despertador. Começo, novamente, a entrar no "túnel", a regressar ao sonho, a render-me ao sono. E, quando já me esqueci que há outra realidade para lá daquela que vai na minha cabeça, ele grita. O despertador. O maldito! O tempo passou e esgotou-se. Os (só mais) dez minutos evaporaram-se. Arreliado, volto a estender o braço para mais uma pancada, para silenciá-lo, para acabar com o som estridente que não se silencia sozinho.

Dez minutos. Sempre só mais dez minutos. Sucessivos dez minutos. Todos os dias assim. Todos os dias o tempo a voar entre o toque do despertador e o levantar. Diariamente a querer adiar o inevitável: jamais ficarei na cama, por mais que o frio me faça a roupa colar ao corpo.

Lá fora faz frio. Seria estranho se assim não fosse... E eu gelo. Gelo mal ponho os pés no chão. Gelo assim que a roupa da cama me deixa a descoberto. Assim que fico de pé. E o corpo não cede. Os ossos não rangem e não se queixam. Aperto-me. Aperto a roupa à minha volta. E, de olhos entreabertos, com as pálpebras a despertar, faço o sol invadir o quarto.

quinta-feira, 28 de novembro de 2013

Portas e janelas que se fecham

Derrotado. Hoje sinto-me assim, derrotado. Se calhar frustrado, também. E triste. Desiludido. Um misto de sentimentos nesta manta de retalhos, onde passa a luz da realidade pelas costuras mal cosidas.

A vida não é fácil. Acho que nunca ninguém disse que era. Mas também nunca ninguém nos prepara, verdadeiramente, para os trambolhões da vida. Se é que é possível alguém se preparar. Se é que é possível alguém adquirir, atempadamente, os artefactos necessários para suportar tudo.

Ir à luta é complicado. É para guerreiros, para sobreviventes, para quem não desiste e não baixa a cabeça. É duro, é difícil, é uma verdadeira prova de resistência. Pode ser "mortal" quando, do outro lado, ninguém joga com as mesmas armas. Quando o carácter, afinal, não é um trunfo, mas um acessório fácil de se descartar. Um empecilho, até. E quando nos deparamos com a mentira em vez da verdade, é sempre tarde: já caímos na ratoeira e alguém passou por cima.

Passar por cima do outro deve ser mais fácil que o que parece. Porque há quem o faça com à-vontade, com destreza, com engenho. Sem remorsos ou pesos na consciência. Consciência, aliás, é o que não há. No seu lugar está o vazio, o vácuo. Porque nesta guerra, ter-se consciência, é ter uma voz inimiga da sobrevivência.

Não é para todos. Isto, definitivamente, não é para todos. É preciso saber-se lutar com as armas dos outros, esquecer-se, por momentos, de quem se é, deixar de se ser fiel à essência de que se é feito. Porque nem sempre os fortes vão em frente. E nem sempre os resistentes se mantêm de pé.

Começar o dia com um «murro no estômago» não é agradável. Há quem fale em desistir, em optar por percorrer outro caminho. Mas desistir também não é fácil. Deixar para trás tudo o que se sonhou, tudo o que se concretizou, tudo o que se ambicionou, também é duro. Porque a vida é feita de sonhos. Porque eles nos alimentam a alma e nos dão energia enquanto se luta. Por mais que se percam sucessivas batalhas. Porque desistir, afinal, pode não ser opção. E, enquanto portas e janelas se vão fechando com o tempo, ainda há espaço para acreditar que, um dia, o telhado se vai abrir para entrar a luz. Porque é muito difícil o chão ceder ainda mais.

quarta-feira, 27 de novembro de 2013

Asas para voar

Quem me dera ter umas asas. Grandes e fortes. Ai, quem dera ter sido abençoado com umas asas, feito mutante, meio homem, meio ave. Com uma independência de ora poder estar aqui, ora poder estar ali. Sem dificuldades, sem barreiras, sem laços. Apenas a vontade de realizar esta viagem...

Mas não, não as tenho. Não nasceram. Não fui agraciado e nasci igual a tantos outros. Numa Era em que é fácil ter umas asas, é certo. Mas não as tenho com a facilidade que gostaria. E, por isso, fico em terra mais vezes que aquelas que desejaria.

Sair daqui já foi um luxo. Agora vai-se com uma maior facilidade e há quem parta com uns trocos no bolso. Mesmo sem asas, vai à boleia de quem segue viagem. Atravessar mares e oceanos, sem grandes esforços, é mais difícil, e ir até ao outro lado do planeta é sempre mais dispendioso. Mas ir até ali, a voar, já pode ser para todos, para aqueles que anseiam em ir à descoberta.

Há sempre quem queira ficar. Quem tenha medo de partir, medo da descoberta, medo do desconhecido. Receio do choque e do embate, do que novas realidades podem despertar no íntimo de cada um. Porque na verdade, no meio de tantas semelhanças, somos todos diferentes. 

Mas há lugares, tantos lugares por descobrir, por conhecer, por viver. Tantos destinos, a pulsar de vida, prontos a nos receber. Quem dera ter umas asas para chegar a todos esses sítios. Para absorver a sua História, as suas gentes, os seus segredos. Para enriquecer por dentro e respirar felicidade. Para testemunhar que este planeta pode ser, afinal, um bom lugar para se habitar. Ai, quem dera ter umas asas.

terça-feira, 26 de novembro de 2013

Almofada de Pedra

Há noites duras. Cruéis. Que podem ser mais frias que a temperatura medida pelo termómetro. Noites daquelas que nos roubam o sono, que nos fazem pensar, que nos levam a dar voltas na cama até não nos conseguirmos libertar do lençol. Noites negras na nossa cabeça, noites claras para a lucidez.

Essas noites metem medo. Muito medo. Porque nos fazem pensar no que não queremos, no que preferimos ignorar ou não ver. Porque provocam dor na alma. São noites incómodas, com ansiedade, com vontade de adormecer rapidamente para se acordar num novo dia. Mas o sono não chega... Outras vezes, com a mente a desdobrar reflexões, o sono é afastado mesmo quando estava tão perto de chegar.

Quantas não são as vezes que chegamos, até, a ter pena de nós próprios... Somos severos em pensamentos com o que fizemos, com o que dissemos, com o que desejamos. Suspiramos em protesto com a nossa personalidade, submissos à razão de que já não vamos a tempo de mudar a nossa essência.

De nada adianta bater no colchão, na almofada, muito menos dar murros no ar. Nada vai mudar, mesmo que se acabe com a escuridão do quarto. A luz não vai trazer a sanidade, quando essa, afinal, estava na escuridão. À claridade, tudo se torna dissimulado, fingido, esquecido. À claridade, tudo é ignorado.

segunda-feira, 25 de novembro de 2013

«Se soubesse, tinha trazido um livro!»

Espera-se muito numa sala de espera. Na verdade, se fosse para entrar e não aquecer o lugar, chamar-se-ia «sala de passagem». Mas não. Chamam àquelas salas, onde se passam horas, até, de «sala de espera».

Seja de um hospital, clínica ou dentista, é raro chegar-se a um destes locais e não esperar. «Aguarde por favor na sala de espera», ouvimos. E esperamos. Mas nunca ninguém está pronto para esperar. Nunca, ninguém, está mentalizado para aguardar pelo que quer que seja. É-se impaciente, olha-se pela janela, consultam-se as horas vezes a fio, inventam-se mensagens por telemóvel para enviar. Enquanto se espera. Enquanto se controla o tempo.

O tempo não pára. Nunca. Mas também não acelera. E, sempre que se espera, parece que ele passa mais devagar, lentamente, a passo de caracol. Matreiro, brincalhão, arreliador. A paciência, essa, é que é inimiga do tempo e, numa sala de espera, os dois entram em conflito. A paciência acredita, profundamente, que ele se arrasta; mas ele, sempre no seu ritmo, vai passando sem «dar cavaco» a ninguém.

Um dos pés começa a bater, ritmicamente, no chão. As mãos esfregam-se uma na outra. Os olhos acompanham todas e quaisquer movimentações. Não há meio de a espera terminar! Pega-se no telemóvel. «Abençoada internet móvel!», louva-se. Vê-se tudo o que havia para consultar e mais o que se inventou. A bateria ameaça esgotar-se. Menos a espera, essa é que não se esgota. Arruma-se o telemóvel e suspira-se. Quantos suspiros já se soltaram?

Há quem adormeça. Quem é vencido pelo cansaço da espera, nunca resiste ao peso das pálpebras. Não se inibe de dormir à frente de quem quer que seja, por mais que a cadeira daquela sala seja dura, fria e impessoal. E deixa a cabeça tombar, para trás, para a frente e para os lados, ao ritmo do sonho. Ao lado há sempre alguém acordado, a apreciar essa pessoa, a controlar o relógio na parede, atento à chamada dos pacientes.

Revistas perdidas no tempo, velhas e folheadas vezes sem fim foram deixadas por ali. Há quem pegue nelas para passar o tempo, há quem as ignore por já as conhecer «de cor e salteado». E, inevitavelmente, conclui-se que não há mais o que inventar para fazer frente à espera interminável. Quanto tempo já passou? Quanto, ainda, falta aguardar? Acaba-se sempre por jurar que, para a próxima, vir-se-á preparado para a longa demora. E, antes do suspiro final que dá origem ao abandono daquele espaço, há ainda lugar para um último desabafo: «Se soubesse, tinha trazido um livro!».

domingo, 24 de novembro de 2013

Estados de alma

Abro os estores e olho pela janela. Lá fora, o céu límpido e azul traz um sol convidativo. Um sol que entra pela janela e ilumina a divisão. Um sol longínquo, tão longínquo que não chega para queimar.

Olho para a rua. Vazia. Vazia de gente e de vida. Tão cheia de carros estacionados. Tão cheia de prédios cheios de gente. Está frio. Mas está sol, luminoso e convidativo. A chamar para a rua, para passeios dominicais, para fora do conforto do lar. Para a vida.

E eu cá dentro, a olhar pela janela, a olhar para o sol que se mantém descoberto num céu rasgado por um prédio e outro. E penso, e pondero, e penso, e questiono. Para onde vou? Quero estar como os outros, como aqueles que encheram as ruas cheias de carros estacionados. Parados. Sem sinais de vida. Como aqueles que, mesmo com um sol a brilhar no céu, preferem estar onde mais ninguém está.

Está frio. Gelam-me os dedos, gelam-me as mãos, gelam-me os pés. Gela, até, a ponta do nariz. Mas está sol. Um sol brilhante. Um sol que diz que é seguro sair daqui. Mas eu quero estar aqui. Quero, sim. É aqui que eu quero estar. Como sempre. Como quase sempre. Nesta doce solidão.

Abro a janela. Confirmo que está frio. Maldito frio! O ar gélido invadiu a divisão. Mas está sol. Um sol impotente, sem força para aquecer o corpo e a alma. Um sol incompreendido, que se lhe exige mais que o que pode dar. Mas que, mesmo assim, nos convida a sair para a rua. E eu não quero. Não vou. Vou, sim, ficar aqui. Neste meu casulo. Neste meu lugar. Onde nem o sol, nem o frio vão ficar.

Amar & Arrotar

Amar e arrotar são dois actos que podiam, perfeitamente, andar de mãos dadas. Parece estranha esta ligação, mas, afinal, o que é que não há de estranho no amor? Ah, sim, porque arrotar é a coisa mais banal que há!

Dizem, os levianos, esses doidivanas, que quem não ama não vive. Não respira. Não sente. Que amar é viver e que entregar-se a alguém é perder as estribeiras, encontrar o êxtase de felicidade. Aquele êxtase que se apaga quando as coisas dão para o torto, é verdade... mas isso são contas de outro rosário. Que andar apaixonado é sonhar acordado, que dormir é entregar-se aos desejos mais íntimos. É, talvez, a maior das palermices, esta coisa do amor. Esta coisa da paixão. Esta coisa dos desejos. É, certamente que é, palerma aquele que não o deixa libertar-se.

Deitar cá para fora esse sentimento é como rasgar as amarras. Sem medos. Sem hesitações. Sem receios. É fugir dos tabus, dos preconceitos. É encontrar o ponto de equilíbrio entre a essência do ser e a harmonia da ligação com alguém. É mostrar-se ao natural, é entregar-se sem mentiras, é confiar de olhos fechados. É deitar tudo cá para fora de forma verdadeira.

Mas não é só o amor que deve ser libertado desta masmorra interior. De cá do fundo. Do lugar mais escondido e resguardado. Também a fúria, a raiva, os medos, as frustrações, os risos, as lágrimas, os devaneios, a insanidade, a falta de paciência, as ilusões, a ironia, as mágoas e tantas, tantas outras coisas devem ser deitadas cá para fora. Como um arroto. Sem controlar, sem pensar, sem poder evitar. Porque a vida também deve ser vivida de forma imprudente. Como um apaixonado sem noção: sem noção do tempo, sem noção dos pensamentos, sem noção da força das palavras proferidas.

Arrotar, e arrotar bem alto, esquecendo a etiqueta e a pseudo-boa-educação. De forma corajosa, cheia de virilidade, cheia de vida. Deitar tudo isso cá para fora. Saber dizer as verdades à maneira de cada um, não engolindo «sapos», nem deixando atravessado na garganta o que não se quer. Porque amanhã é sempre tarde para se dizer o que já havia de ter sido dito.

Se isto tudo não é verdade, são, então, devaneios meus. Puros devaneios. Nada mais que devaneios. Que culpa tenho eu que «amar» e «arrotar» possa estar na origem de «amarrotar»?!